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Sobre Clea Espíndola
No âmbito do que poderíamos chamar cerâmica de arte, o país tem tido representantes de primeira grandeza. Mas são japoneses de nascimento ou de segunda geração, como, só para citar duas profissionais que já expuseram no MASC, Kimi Nii e Katsuko Nakano. Personagem especial, pela ação proselitista foi Maria do Barro, incansável incentivadora da técnica; cônscia da alta genealogia do ofício e, às vezes, imodesta no convencimento de seu papel demiúrgico. No meio artístico erudito, não apoiado no que tange ao conforto da tradição, propostas criativas como a de Ana Maria Maiolino se destacam, de modo indiscutível. Maiolino, porém, se utiliza não apenas da cerâmica Raku, senão também do gesso, do cimento, da madeira.


De resto, a arte contemporânea brasileira (a “arte internacional brasileira”, diria Tadeu Chairelli) acostumou-se a usar demasiada madeira (o que tem pertinência em virtude de questões atuais), muito tecido e outros materiais variados que vão do metal ao vidro, para não falar nos perecíveis. E deixou o barro de lado. Alexandre da Cunha tem feito uso incidental e complementar da argila crua, e Tunga, experiente em todos os materiais, produziu, na técnica, a animada série dos Jarros de Barro.


Desse escasso emprego, Santa Catarina parece eloqüente exceção, porque aqui os intérpretes da visão contemporânea tem achado, na argila, instrumental para linguagens e poéticas. Ainda que se alinhem com a desfetichização da obra de arte, um grupo importante de criadores atentam para as inúmeras virtualidades do barro como meio para o trabalho tridimensional significante. Apontemos os nomes de Betânia Silveira, de Rosana Borlolin, de Isabela Sielski.


Nesse particular, Santa Catarina teve posição privilegiada, já que à exceção de um representante seu, Martinho de Haro, ligado à Escola de Paris, o Estado não experimentou propriamente o modernismo. O que sucedeu nos anos 60 foi uma vibrante eclosão de individualidades criativas que partiram, por assim dizer, da tabula rasa. Antes de Martinho, e logo depois dele, não havia nada que pudesse integrar a organicidade de uma história (ainda que esta possa se fazer por saltos). Abatida a noção de tradição também se enfraquece a de ruptura. Então, a circunstancialidade do pós-modernismo veio colher, multifacetada, vigoroso conjunto de propostas categorizáveis, de larga amplitude, que pôde incluir as experiências com o universo cerâmico. Em tal panorama se evidenciam os nomes mencionados acima, e ressalta a produção de Cléa Espíndola por operar, com originalidade, em vários territórios do presente, que vão do ritual cotidiano até as medidas da exigente Gaia, nossa deidade em questionamento.


O desempenho de Cléa Espíndola no território (hoje conturbado) da arte assemelha-se a uma aventura calculada. Em seu caso, o estatuto do objeto produzido por esse desempenho conserva um núcleo significativo, mas muda sempre de significado. Basicamente ela é uma escultora que se serve da argila cozida e se encanta com a possibilidade de transformação intrínseca e extrínseca desse meio; com sua amplitude semântica. A terracota tem uma densa crônica antropológico-etnográfica, de rica funcionalidade. Das culturas recuadas e, depois, da produção popular, aquela prática cerâmica conservou, no universo de Cléa, apenas o núcleo de natureza primordial, que se desvinculou do útil e aprofundou seu conteúdo simbólico. Para nós, ocidentais, esse é um fatal destino, após o substrato lendário da gênese conforme a Bíblia. Para nós, brasileiros, não deixa de anunciar um reatamento com o patriarca pré-barroco Frei Agostinho da Piedade, uma alusão ao corpo da Aparecida Senhora e a distante saudade das peças funerárias marajoaras.


... A escultura é uma categoria que diz respeito ao plano volumétrico, ao “cúbico isolamento”; a cerâmica concerne ao domínio matérico, à mão e, quando se torna “artística”, à mente. Assim é para Cléa. O barro não constitui apenas o material palpável, moldável por mãos experientes. Torna-se veículo de intenções e valores. Ciente de tudo isso, a ligação da artista com o meio matérico de seu trabalho é fundamental; provém dos fundamentos. Mas, também, diz respeito à ideologia. A argila não se coloca como coadjuvante de uma instalação. Ao contrário, contém em si a qualidade de prima e última razão. Por ariscas intenções e a partir de intensos processos capazes de gerar micromundos que surpreendem pela atualidade, Cléa Espíndola vem exercendo a maturação das estruturas mediante séries criativas imaginativamente bem congeminadas, seja pela coerência, seja pela diversificação. Na temática de tais séries destacam-se, sucessivamente, calçados, máscaras, raízes – tentáculos e sustentação jacentes, organicidades destituídas. Agora, remontando aos luxos da terra e às formas instauradoras, vêm os mistos de sementes, de casulos, de abrigos, de cenotáfios, de vida e morte, enfim. Trata-se de um itinerário, portanto, que vai da figuração explícita e bem humorada, extrovertida até a ocultante-revelante face da perturbadora concepção tridimensional de formas (elevação, ou descenso). Que, segundo a artista, remete ao riquíssimo mitologema do ovo e que, no plano plástico se investe de novo fácies: o da petrificação. Os calçados (sapatos, sandálias, etc) eram contrafações perpassadas por amável paródia: comentário entre irônico e fetichista, com uma pitada de arte Pop. Inabalável item de moda. Não era só isso, entretanto; porque, junto com a cadeira em que sentamos, poderia o calçado, com que andamos, ser entendido como um dos objetos-heróis, paradigmáticos da ritualização mais recorrente no subconsciente representativo dos séculos XX-XXI. Pelo menos a partir das cadeiras e das botas de Van Gogh.


Nas peças de Cléa Espíndola percebemos o magnético contraste entre o corpo cerâmico do objeto e seu complemento metálico, representado por pregos ou fios. Moldar a massa ductil, que se petrifica; vergar o ferro, que se aligera, rabisca o espaço, cinge, enfuna e, por fim, quase que voa: eis o diálogo entre o peso e a leveza, à beira de uma transformação perversora.


Quem se guiasse pelos títulos das obras julgaria, supondo estar diante de uma arte alusiva, que eles antecedem à conformação presente, ou à situação: “alados”, “espinhos”, “nos trilhos”, “aninhar”. Não é possível encontrar designativos mais pertinentes. Difícil decidir, se a perspicácia do exercício nominativo antecede ou sucede os vestígios de itinerários que se corporificam nas peças “monumentos”. O mero enunciar desses títulos é um convite a que abramos os dicionários de simbologia.


Feitos de cerâmica com engobe (argila líquida para pintura), óxido, mais raramente esmalte, metal oxidado e queimados em olaria em forno a 980º, os trabalhos de Cléa Espíndola são muito grandes para o gênero. Isso é parte integrante da proposta, não apenas porque o grande formato acentua o caráter escultórico do objeto, como porque magnifica os possíveis sentidos que a nossa imaginação de intérpretes venha colher na fecunda turvação dessa presença.


João Evangelista Andrade Filho, crítico de arte, desenhista, pintor, escritor e professor.